sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Fortaleza do Guincho: Rendido!



Tenho uma relação de já há alguns anos com a Fortaleza do Guincho. Em rigor não posso cair na tentação de dizer que é o melhor restaurante (detesto estes títulos absolutos e definitivos que não querem dizer nada) mas posso assegurar que é daqueles poucos em que sempre me senti bem e onde sempre gosto de voltar. Gosto do edifício, aquele velho forte militar do século XVII, bem convertido num boutique hotel de charme. Gosto da soberba vista sobre o oceano, da forma como as aguas quase nos vêm lamber os pés quando batem com estrondo nas rochas do promontório. Gosto do requinte um pouco demodé daquela sala de jantar, cheia de luz e onde o sol se demora a por antes de mergulhar definitivamente lá longe sobre o mar. Gosto ainda muito do serviço, simpático, sempre atento, com um bom equilíbrio que é sempre complicado de manter entre a afabilidade e o profissionalismo.

E, claro, tenho apreciado as subtis e graduais alterações que tenho notado no estilo da sua cozinha desde os tempos que já lá vão em que o famoso chefe francês Antoine Westerman se tornou consultor e o restaurante entrou na categoria daquilo que se convencionou chamar fine dining. Lembro-me ainda bem do que foi o trajecto do restaurante com o chefe executivo Marc Le Ouedec. Primeiro uma clássica cozinha francesa, depois, lentamente, a descoberta dos produtos portugueses e forma como lentamente os começou a integrar nos menus e a fazê-los brilhar em pratos inspirados. Gostei especialmente do consulado do chefe seguinte, Vicent Farges, sobretudo na última fase em que se libertou definitivamente da tutela de Westerman e assumiu sozinho a responsabilidade da cozinha. A base da sua cozinha e as técnicas continuaram a ser francesas mas ninguém antes dele tinha tirado tanto partido dos mariscos e peixes da nossa costa e elevá-los ao altar da perfeição. Sim, eu era daqueles que achava uma injustiça a falta da segunda estrela Michelin.



A nova Fortaleza com Miguel Rocha Vieira

Por isso, quando há pouco mais de um ano apareceu a notícia da saída de Vicent Farges da Fortaleza, confesso que a primeira sensação foi de um certo desconforto. Não gostamos de abdicar aquilo que temos por adquirido. O nome do novo chefe executivo,  Miguel Rocha Vieira (MRV), despertou-me sentimentos contraditórios. Gostei muito da aposta num cozinheiro português, contrariando a ideia que fez cá vencimento durante muito tempo que os chefes de fine dining com estrelas ou aspirantes a estrelas teriam que ser estrangeiros (obrigado José Avillez por ter desbravado este caminho!). Por outro lado, nada sabia dele, para além ter já conquistado a estrela no restaurante Costes, em Budapeste (a primeira da Hungria!) e de aparecer muitas vezes como júri em concursos de televisão com uma imagem nem sempre bem conseguida.

Quando a simpática e muito profissional Ana Músico, responsável pela comunicação da Fortaleza do Guincho convidou uma pequena poule de jornalistas e gastrónomos a visitar o restaurante e experimentar o novo menu, já da responsabilidade do novo Chefe, as impressões resultaram um pouco inconclusivas. Porque se por um lado já se percebia ali, naquelas propostas, um grande domínio de técnicas, uma atenção no detalhe e uma certa irreverencia refrescante, tornava-se difícil compreender um linha de rumo, uma coerência estruturante da nova carta, com várias propostas que sendo em si interessantes, resultavam para mim algo confusas no conjunto. Percebia-se que se estava ali a construir alguma coisa, percebia-se o desejo de ruptura com o passado recente, que se descortinava também na decoração do espaço, na nova aparelhagem da mesa num certo despojamento estilístico mas não era claro, pelo menos para mim, para onde se pretendia caminhar.

2ª volta conclusiva

Um ano depois. tenho que confessar, tudo agora é mais claro. Quis o acaso que voltasse ao restaurante duas vezes com um ligeiro intervalo, uma num almoço particular e noutra, a novo convite da casa e as coisas começaram a fazer sentido. Há o desejo assumido de honrar uma tradição gastronómica portuguesa, pondo em destaque os produtos nacionais, apelando a uma memória de sabores genuínos e inserindo-os numa encenação vistosa, em geral bem conseguida com um ou outro pormenor excessivo ou de gosto mais duvidoso.

As entradas





Por exemplo, logo nos snacks de entrada evoca-se a prática quase caída em desuso da secagem do peixe ao sol na Nazaré com a espectacular Brandade de carapau sobre a telha de tinta de choco e grão-de-bico. Pena que o vistoso carapau seco sobre a rede seja só para vista, contrariando o velho princípio de que tudo o que vem para o prato é comestível. Noutro snack, é extraordinário de sabor  o micro Pastel de massa tenra de caldeirada de safio que vem acompanhado por um shot de cerveja artesanal. Brilhante a ideia do Habitat de percebes, em que os comensais são convidados a aspergir um pó de algas sobre os sabores delicados dos moluscos, envolvidos por um puré de laranja e uma maionese de ostras contrapondo aos sabores mais vincados dos cogumelos shimeji braseados. Pungente de sabor, o Pimento grelhado, recheado com a essência da cabeça de peixe e do creme de pimentos vermelhos.



Entre as entradas e os pratos, põem-nos na mesa uma bonita pedra polida onde parecem jazer quatro coloridas criaturas marinhas. É um engano e uma maldade! São manteigas, senhores, de sabores intensos e misteriosos, que não resistimos a barrar nos pães crocantes, um tortura viciante a que dificilmente conseguimos resistir.

Do mar

Entrado nos pratos, o Carabineiro do Algarve estava irrepreensível bem conjugado com as várias texturas das cenouras e citrinos, acentuando o toque de frescura a que o caldo das cabeças do marisco, que é vertido depois, empresta uma grande complexidade.





















Outra revisitação leva-nos a Setúbal e à memória do Choco frito, aqui servido sob a forma de três pequenos nacos com maionese de bergomota e menta. Para mim é um dos exemplos da decoração maximalista e excessiva com a carcaça do choco seco, das conchas e da rede de pesca a pesarem visualmente no conjunto. Mas o "momento", como agora se diz, é salvo pelo belo Filete de salmonete a vapor (foto da direita) com os tentáculos do choco e o molho da sua tinta.



Notável é o prato de peixe seguinte: um fino Filete de pargo com cevadinha em forma de risotto e , ladeado de dois molhos de funcho que não se fundem e entre si contrastam.

Da terra






















Na ementa que nos foi servida, a carne foi representada por um prato que MRV chamou "Da Cabeça aos pés". Como o nome deixa adivinhar é uma evocação do tradicional aproveitamento total do porco que vem aqui servido em forma de naco acompanhado por um saboroso xerém de ameijoas e cebolas (lembrando a carne de porco à Alentejana) e ainda uma terrina do mesmo reco feita com as partes moles do dito. Não posso negar que os sabores eram deliciosos mas a combinação e sobretudo o desdobramento em dois pratos, acabam por resultar um pouco confusos.

Dos doces





















A refeição termina com a apresentação de duas sobremesas. A primeira, chamada Dunas do Guincho,  é muito bem conseguida, tanto em termos visuais como de paladar. Os sabores dos frutos secos em várias texturas, evocando o pinhal das redondezas, é muito apelativa e conquistará o agrado geral. A segunda, chamada de Memórias da minha infância, é menos espectacular (tirando o facto do próprio prato vir tingido de um vermelho vivo comestível) mas agradou-me por ser leve e pouco doce. É um tributo à tigelada, acompanhado de um sorbet de marmelo e marmelada, num bom equilíbrio entre a acidez e o açúcar.

Um ano depois de assumir a chefia do restaurante, a cozinha de MRV revela-se com um princípio identificador, assumindo sem complexos um corte com o passado recente. A recriação de pratos baseados na cozinha tradicional ou na sua interpretação mais ou menos livre, ao mesmo tempo que se recuperam ingredientes e sabores, alguns deles já quase perdidos na memória, tem indiscutível mérito e pode funcionar como um impressivo cartão de visita da gastronomia portuguesa a quem nos visita. Sabendo que a maioria dos clientes da Fortaleza são estrangeiros, penso ser a opção acertada.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Era assim o meu Natal


Não faço parte daquele tipo de pessoas que gostam de proclamar alto e bom som o seu desprezo pelo Natal. Para mim, o Natal é ainda uma época especial e se é verdade que à medida que avançamos na idade, as coisas se vão diluindo um pouco e a inocência há muito se foi, continuo a celebrar a festa a a manter vivas tradições que fazem parte da nossa identidade.

O Natal, para mim, remete inevitavelmente para a infância, aquele tempo absoluto que nos marcou e moldou definitivamente. A minha infância foi passada nos anos 60 no Tramagal e é daí que tenho as mais impressivas recordações do Natal. O nosso Natal era sempre vivido só a quatro, com os meus Pais e o meu irmão. Numa família conservadora e profundamente religiosa, o símbolo do Natal era evidentemente o presépio que a árvore de Natal só muito mais tarde entrou em casa por pressão de nós as crianças, certamente já contaminadas por influência exterior. Mas a verdade é que a montagem do presépio nos entusiasmava bastante. Lembro-me de ir para o pinhal com um carrinho de mão para apanhar musgo e algumas pedras para a construção da gruta natalícia. Havia evidente prazer no trabalho de montar esse cenário idílico no qual colocávamos depois as figuras das personagens depois de cuidadosamente desembrulhadas das caixas onde dormiram durante o resto do ano. Não era um presépio rico, apenas com meia dúzia de peças, incluindo a Sagrada Familia, alguns pastores e umas poucas ovelhinhas. Mas era uma representação que preenchia toda a nossa imaginação e com a qual nos entretinhamos a brincar, o que levou uma vez que tivéssemos partido o Menino Jesus para nosso desespero. Minha Mãe ensinava-nos que as nossas boas acções (ou sacrifícios, já não sei bem!) que pudéssemos praticar faziam crescer as palhinhas da manjedoura que aqueciam o Menino  e levávamos o conselho à letra.

Naquele tempo não havia ainda Pai Natal, tido como um símbolo mais ou menos pagão. Os pedidos de presentes eram feitos ao Menino Jesus a quem escrevíamos cartas, assegurando que nos portamos bem e de quem depois esperávamos com ansiedade se os nossos desejos tinham sido satisfeitos. Quando éramos muito pequenos, não tínhamos autorização para ficar acordados até à meia noite pelo que a magia da abertura dos embrulhos só acontecia no dia 25 de manhã. Já um pouco mais crescidos, começámos a ir à Missa do Galo e esse ritual passou a fazer parte da tradição natalícia. Ao contrário do que se possa pensar, devo dizer que gostava de ir à Missa do Galo. Era uma Missa festiva, com muitos cânticos e uma atmosfera especial, fruto da presença de muitas pessoas vindas de fora e que eu nunca via no resto do ano. A Missa terminava sempre com a cerimónia do beijo ao Menino Jesus e encantava-me ver as longas filas de gente à espera de se ajoelharem em frente do padre que exibia a imagem reluzente (e certamente lambuzada!) do Menino.

Indissociável do Natal eram também as tradições à mesa. Minha mãe era uma boa cozinheira e excelente doceira e nessa época fazia questão de nos tornar isso bem evidente. O prato do jantar da véspera era o bacalhau que eu na época não apreciava por aí além mas que compensava depois pela prova dos muitos doces postos na mesa. Nos fritos havia sobretudo dois tipos de coscorões, um com um formato de uma flor que o meu Pai ajudava a fritar, usando uma pequena cana recortada com dentes que ajudavam a massa a rodar no óleo e outros que a minha Mãe chamava chamava de "turcos" e que eram uma faixa de massa muito fina e quebradiça enrolada em várias voltas e envolta em açúcar e canela que eram os meus favoritos. Havia ainda as broas de mel de que já falei, um bolo imperial do qual ainda não consegui reproduzir o ponto certo, pudim de ovos, uns pequenos bolos amarelos em forma de papel chamados "pastilhas de Londres", entre muitos outros.
Uma festa para os olhos, uma alegria para os estômagos que não raro era seguida de desarranjos intestinais inevitáveis!

Era assim o meu Natal.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Ainda a propósito de umas broas


O curto comentário que fiz no FB sobre as broas de mel de minha Mãe despertaram alguma curiosidade e algumas pessoas amigas chegaram-me a pedir a receita. Não tenho problema nenhum em divulgá-la no fim deste texto até porque a comida só tem verdadeiro sabor quando é partilhada.

Como já disse era por altura dos Santos na aldeia (hoje vila) do Tramagal, concelho de Abrantes, que se fazem as ditas broas. Para nós, crianças, esta época dos Santos inaugurava o período das festas pleno de emoções que se prolongava até ao Natal e não tem correspondência com o que hoje se vive com a tradição importada do Halloween. O dia de Santos, 1 de Novembro, começava bem cedo e era uma verdadeira festa. Bandos de crianças batiam todas as ruas do Tramagal pedindo «bolinhos, bolinhos, à porta, pelos seus santinhos». Minha Mãe preparava cuidadosamente os sacos de pano que levávamos nesse peditório. Lembro-me que não era um saco de pano qualquer mas um bonito bornal feito em mosaico patchwork, de rendas e lãs que marcavam a diferença e que nos faziam sentir, a mim e ao meu irmão, orgulhosos e especiais.

As pessoas do Tramagal em geral levavam muito a sério esta tradição dos Santos. Compravam ou preparavam com antecedência iguarias que distribuíam às crianças. Havia chocolates, rebuçados, tremoços, fruta fresca, frutos secos, passas de figo, broas, biscoitos de várias formas e feitios, pães, entre muitas outras guloseimas. Em algumas casas de lavradores mais ricos, era mesmo montada uma banca com os empregados da casa a atender a criançada. Era tanta a fartura que muitas vezes tínhamos que ir a casa despejar o saco antes de continuar a jornada por outra rua. Apesar do clima de festa generalizada, a recepção não era exactamente igualitária. Nas casas de pessoas amigas, mais chegadas, ou que tinham, por uma razão ou outra, mais consideração pela nossa família, o atendimento era especial. «Então vocês são filhos de ....?» «Ah, então esperem aí um pouco, deixem atender primeiro estes meninos» E lá vinha depois um bolo, às vezes mesmo dinheiro, que nos apressávamos a colocar no porquinho mealheiro. Cerca das 11 horas ou ao meio dia havia uma interrupção para a missa e logo depois dela a ronda final do peditório. À hora de almoço, tudo acabava repentinamente. Mas a tarde prometia ser bem passada a separar as ofertas e a comer doces, até a Mãe dizer "já chega que ficam sem apetite para jantar".

Vamos então às broas.  Não tenho a certeza da origem desta receita, que é de resto muito simples, mas penso que a Mãe a herdou da minha Avó que era cozinheira numa casa de família abastada na Praia do Ribatejo. Sei que toda a gente que as provava gostava muito e muitos pediam-lhe a receita mas também me lembro que mesmo essas, quando as provávamos depois, não nos sabiam ao mesmo. Eu próprio demorei a acertar o ponto e os meus filhos eram implacáveis nas críticas durante essas tentativas até finalmente concederem: «agora sim, estão iguais às da Avó».  Quando a Mãe faleceu, tive por ponto de honra continuar esta tradição, porque de facto gostamos muito delas, os miúdos pediam-nas e achei que era uma forma de homenagear e eles terem sempre presente a imagem da Avó. Apesar do trabalho, é das coisas em cozinha que faço com mais prazer.

Broas de Mel e Amêndoas
Ingredientes:
1 chávena de açúcar
1 chávena de água
1 chávena de mel (convém não ser muito escuro)
1 chávena de azeite
2 chávenas mal cheias de farinha de trigo
Amêndoas peladas qb

Colocam-se os ingredientes, à excepção da farinha, pela ordem indicada, num tacho grande e largo e vai ao lume brando, mexendo de vez em quando. Deixa-se levantar fervura e subir a espuma até à borda do tacho, mexendo sempre.
Retira-se do lume e adiciona-se a farinha, mexendo energicamente para a dissolver o mais possível. Coloca-se outra vez ao lume brando, mexendo sempre para dissolver os grumos de farinha que fiquem até a massa engrossar e soltar-se das paredes do tacho. É preciso alguma força!
Deixe arrefecer um pouco e com a massa ainda quente/morna modele com as mãos o formato fusiforme que vê na foto (cuidado poque queimar as mãos!). Coloque no meio uma amendoa e leve ao forno cerca de 25/30m a 200 graus.
Para mim a verdadeira dificuldade foi acertar no tempo de forno. Para elas ficarem com a consistência que gostamos - crocantes por fora e macias mas compactas por dentro - não podem ter menos (ficam moles) ou de mais (ficam duras) tempo de forno.
Se alguém quiser tentar, boa sorte e bom apetite!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Alves de Sousa: saber fazer!


Uma empresa estritamente familiar

Das muitas centenas de apresentações de vinhos que já presenciei, os lançamento de Alves de Sousa são seguramente dos mais profissionais e eficazes que se fazem entre nós.

A empresa é estritamente familiar. Foi já no longínquo princípio dos anos 90, que Domingos Alves de Sousa, filho e neto de viticultores do Douro, que produziam vinho fortificado proveniente das suas quintas para as grandes casas de vinho do Porto, resolve lançar-se na produção e engarrafamento de vinhos do Douro com marca própria. Visão estratégica e determinação não lhe faltaram. E com isso iniciaram um movimento imparável que teve muitos outros seguidores e colocaram os vinhos tranquilos do Douro nas bocas dos consumidores mais exigentes e na admiração da crítica especializada nacional e mundial.

Os vinhos da Quinta da Gaivosa que foram aparecendo, primeiro sob a direcção de técnica de Anselmo Mendes e nos últimos anos já sob a batuta de Tiago Alves de Sousa, filho de Domingos e entretanto formado em enologia, estiveram sempre entre os melhores do Douro, numa consistência notável. Novas marcas de referencia como a Vinha de Lordelo ou Abandonado, entre muitas outras, vieram completar o lote de vinhos impressionantes que qualquer apreciador gostaria de ter na sua garrafeira.

Em 2016, a família Alves de Sousa celebra a inauguração de uma nova adega que já é a menina dos seus olhos e permite lançar-se para outros voos. Ainda não tive oportunidade de a visitar mas as fotos apresentadas e a descrição feita da sua traça e das funcionalidades, deixa perceber que haverá um antes e um depois da nova adega.

Um profissionalismo rigoroso

Sejamos francos. O Douro está hoje na moda e vinhos bons, já muitos produtores, felizmente, os fazem. O que gostaria de realçar agora, inspirado pela apresentação que presenciei ontem à noite no hotel Ritz em Lisboa, é a forma como Domingos e Tiago encenam esta performance anual junto da imprensa especializada e de alguns opinion makers.

Sem recurso a agências de comunicação e utilizando apenas a prata da casa, os Alves de Sousa conseguem a proeza de ter a sala cheia das pessoas que lhes interessam, fazer uma apresentação fluente e prova de novidades durante uma hora e meia, sustentada por abundante e esclarecedora documentação entregue a cada participante e terminar com um jantar de altíssimo nível onde foram degustados  outros vinhos históricos da casa. Nada é deixado ao acaso. É aqui, onde muitos falham, que Alves de Sousa acerta.

Quem vê há muitos anos trabalhar Domingos Alves de Sousa sabe que ele não deixa nada ao acaso. Atento ao pormenor, minucioso quanto chegue, trabalhador incansável, não deixa de reclamar para si os méritos que reivindica mesmo quando os outros não são tão lépidos a reconhecê-lo. Ficou célebre o seu comentário quando recebeu pela primeira vez o prémio Produtor do Ano, em 1999 (recebê-lo-ia outra vez em 2006!): «Acho que já o merecia!». É esta exigência para si próprio e para os seus que obriga que nos seus actos públicos e nas relações com a comunicação social ele não facilita.

Acerta, por exemplo na escolha do local. Há muitos anos que se mantém invariavelmente no Ritz. Não por ostentação, embora este será provavelmente o mais caro sítio de Lisboa para se fazer uma prova. Mas porque o hotel e as condições oferecidas, o serviço, o catering lhe garantem uma qualidade que noutros locais não lhe seria dado como adquirido. Onde é importante, não corta custos. Aqui tem a certeza que os copos são adequados, - 11 por pessoa, na apresentação da semana passada  - que a temperatura dos vinhos é irrepreensível, que o serviço é feito por gente competente, afável e ao ritmo desejado. Os convidados são bem instalados, e trabalham confortavelmente. A sala é ampla e exclusiva, não havendo interferências de outros eventos, a imersão garantida é total.

À frente de cada jornalista, uma mesa de trabalho com um completo dossier informativo, papel e lápis. Quem está habituado a receber muita informação inútil ou desadequada, incompleta ou até por vezes mal escrita, reconhece aqui a valia de uma descrição da empresa, do percurso percorrido, dos prémios ganhos, de informações sobre a nova adega recentemente construída, do report com o balanço do ano de vindimas e com a explicação da estratégia da prova. Cada vinho apresentado tem uma ficha completíssima, de onde consta a história do mesmo, a explicação do seu posicionamento no portefólio da casa, as colheitas anteriores, as medalhas ou distinções obtidas, para além das informações técnicas sobre o vinho: as castas, a idade das vinhas, os detalhes da vinificação, do estágio, as características analíticas, etc. Como são muitos anos a fazer isto, eles advinham já muitas das perguntas que os jornalistas costumam fazer: quantas garrafas produzidas, qual o preço de venda ao público, para que mercados se destinam os vinhos, etc.


Gostei sobretudo de ver o jovem Tiago Alves de Sousa a conduzir a prova. Quem o viu há uns anos, a aparecer timidamente ao lado do então enólogo consultor, dando uma achega aqui e outra acolá, não pode deixar de notar a grande segurança e desenvoltura com que fez a apresentação dos 11 vinhos da noite. Aliando uma sólida competência técnica, obtida pela formação do curso de enologia e por pós-graduações e actualizações académicas posteriores, Tiago mostra o profundo conhecimento sobre cada parcela, de cada casta, de cada cepa. E tudo isso com a paixão de quem fala sobre aquilo que é seu. O tom é coloquial e tirando o abuso do bordão "realmente" repetido muitas dezenas de vezes, é muito agradável de seguir. Mal dei pela hora e meia da prova.

Os vinhos


Os vinhos apresentados foram dois brancos, sete tintos e dois Portos.

Dos vinhos brancos foram apresentados o Branco da Gaivosa Grande Reserva 2014 e o Alves de Sousa Pessoal branco 2008. No jantar posterior tivemos ainda a oportunidade de provar o Branco da Gaivosa 2015. Gostei muito do primeiro: profundo, grande complexidade, fruta branca com um toque mineral. Envolvente e sedoso, apoiado numa boa acidez, é um vinho de guarda que já dá prazer a beber à refeição. O estilo do segundo é propositadamente polémico e representa uma aposta da casa que se vem mantendo coerente. Lançar em 2016 um branco de 2008 revela já essa determinação no procurar fazer diferente. Mas a verdade é esta edição está um bocadinho mais acessível relativamente a a colheitas anteriores mesmo para consumidores que em princípio podem não apreciar o estilo. Já não é tanto o "ama-se ou odeia-se" de que falava o pai Domingos. Do perfil, mantém a austeridade agora um pouco mais polida. Um vinho bom para despertar discussões apaixonadas.

 Os três tintos seguintes foram da Quinta Vale da Raposa, todos da colheita de 2013. Touriga Nacional, Sousão e a recuperação da marca Grande Escolha que em tempos tinha sido descontinuada e que agora em boa hora regressa. Está belissimo o Touriga, muito fresco nas suas notas florais e de fruta preta, sedoso com madeira bem integrada. O Sousão confirma o estilo mais rústico, carregado na cor, encorpado, taninos vivos e um bom final. Boa surpresa o Vale da Raposa Grande Escolha. Fruta de boa qualidade, tudo muito afinado, num conjunto de grande finesse e um bom final.

O Quinta da Gaivosa que foi apresentado foi o 2011 e está tudo dito. Já dá muito prazer em beber agora mas advinha-se um futuro grandioso para quem tiver a paciência de esperar. Gosto sobretudo da qualidade da fruta madura mas com o equilíbrio da frescura, num conjunto que revela grande harmonia e sofisticação. Para além de tudo, é um vinho que costuma funcionar muito bem à mesa, como de resto tivemos oportunidade de verificar no jantar em que foi servido o seu irmão mais velho de 2008, esse também em excelente forma.

O Vinha de Lordelo, também da colheita de 2011, apresentou-se a seguir. Provém de vinhas velhas com  mais de 100 anos, numa parcela da Quinta da Gaivosa que os proprietários desejaram identificar e vinificar separadamente desde 2003. A produção é escassa - apenas um cacho por videira, revelou Tiago - e as mais de 30 castas autóctenes que compõem o lote garantem um vinho cheio de complexidade e de grande profundidade. Apesar de se assumir como de gama superior (vide o preço recomendado de 64€!), para o meu gosto pessoal, prefiro mais o estilo da Quinta da Gaivosa.

O penúltimo tinto apresentado é o Abandonado, uma marca mais recente que as anteriores mas que já conquistou um lugar de destaque entre os vinhos portugueses mais cotados (80€ cada garrafa!) A colheita apresentada é a de 2013, um ano complexo e não inteiramente consensual. Aqui predominam as notas balsâmicas, um toque mineral e uma estrutura muito sólida, completada por um longo final. é um vinho impressionante, muito apelativo em prova, onde na minha opinião funcionará melhor que acompanhando comida.

Para acabar a série de tintos, veio o Alves de Sousa Reserva Pessoal 2007. Este vinho, como o nome indica, tem uma filosofia muito própria. Lançado apenas em anos considerados de grande qualidade, tem um estágio longo de pelo menos 7 anos em garrafa depois de ter passado 14 meses em barricas novas. Este 2007 está já numa fase primorosa, ainda com boa cor e com uma fruta de grande qualidade, tudo bem envolvido num conjunto de equilíbrio perfeito entre elegância, corpo e frescura. Um vinho de grande prazer.

A apresentação finalizou com a prova de dois vinhos do Porto, Fazer Portos para a família Alves de Sousa é sempre voltar à base, aos fundamentos do seu negócio que começou há 5 gerações atrás. Foi por isso natural, que tendo consolidado a imagem da casa com os vinhos do Douro, quisessem também estender a sua assinatura aos vinhos do Porto que sempre fizeram. Apresentaram o Vintage 2013 e o Tawny 20 Anos. Gostei do Vintage, um perfil mais fresco e muito apelativo que se bebe já com grande prazer. Bem conseguido, também o 20 Anos, com um aroma intenso a frutos secos e uma boca onde se nota frescura e elegância.


O Jantar

Como disse atrás, não é por acaso que o Hotel Ritz é a escolha recorrente das apresentações Alves de Sousa. Se dúvidas houvesse, o menu do jantar assinado pelo chefe executivo Pascal Meynard confirmou mais uma vez a justeza da escolha. Cada um dos pratos foi concebido para fazer brilhar os vinhos que os acompanhavam. Isso foi particularmente evidente no caso do Alves de Sousa Pessoal Branco 2008, servido como o Foie Gras (que bela combinação!), na foto da esquerda, no bacalhau com o Gaivosa 2008 ou nessa apoteose final que foi a bela sobremesa de chocolate e frutos vermelhos que acompanhou o Vintage 2009.


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Real Companhia, Velha só de nome


Celebrar 260 anos com um Porto monumental!

Tive recentemente a oportunidade e o privilégio de assistir às comemorações dos 260 anos da Real Companhia Velha. Foi uma jornada inesquecível que se desenrolou por dois dias e permitiu perceber que não há passado que valha se ele não souber projectar-se no futuro. Por tudo o que vi e, sobretudo pelo que provei, é fácil constatar que os caminhos seguidos pela equipa de Pedro Silva Reis e com a direcção enológica de Jorge Moreira, são muito sólidos e consistentes.

O programa começou com a comemoração histórica dos 260 anos da Companhia. Nas caves de Gaia, por entre pipas centenárias, e com figurantes vestidos a rigor, evocou-se o século XVIII e aquele ano fundador de 1756 em que por alvará régio, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada, correspondendo às solicitações expressas de um conjunto de lavradores e homens bons do Porto. Para quem gosta de história e do vinho do Porto, é sempre emocionante poder confrontar-nos com os documentos originais expostos na sala da Administração da RCV e que fazem parte da nossa identidade.


Mas é claro que a uma Casa de vinhos comemora com vinhos. E a RCV foi desencantar ao baú da memória e às pipas da história um vinho verdadeiramente avassalador. Chamou-lhe Carvalhas Memories, vestiu-o com a dignidade requerida num garrafa de cristal Atlantis e num estojo em madeira Pau Rosa do Brasil e apresentou-o como um objecto de luxo. Este Porto remonta à vindima de 1867, na Quinta das Carvalhas, ali em frente do Pinhão. Na época já era uma quinta de referência, pela sua extensão e qualidade das uvas produzidas, propriedade da firma Miguel de Sousa Guedes que já em meados do século passado se incorporou no património da RCV e é hoje a sua principal jóia da coroa. Fiel à política da Casa, os vinhos tawnies velhos não são regularmente refrescados e conservam-se nos velhos tonéis tal e qual estão. No caso deste, só no engarrafamento final foi ligeiramente refrescado com uma pequena quantidade da colheita de 1900, tendo em vista proporcionar-lhe um pouco mais de vigor e frescura.

Jorge Moreira teve então oportunidade de explicar o contexto deste Porto histórico com 149 anos de idade. Explicou que o crescente interesse pelos tawnies que hoje assistimos nem sempre foi evidente e que ainda nos últimos anos do século XX eles eram relativamente pouco valorizados. As firmas inglesas sempre puxaram mais para o estilo vintage e por isso a atenção mediática dos críticos e da imprensa em geral estava focada nos vinhos que envelheciam nas garrafas. Felizmente que isso hoje mudou radicalmente e todos reconhecem que a lenta oxidação nos pipos de madeira velha confere aos vinhos fortificados um conjunto de propriedades únicas que transforma estes vinhos em algo de sublime e por sinal, até bem mais adaptados ao acompanhamento da maioria das sobremesas dos portugueses. Não é o caso deste Carvalhas Memories 1867 que não precisa de sobremesa nenhuma para expressar a sua essência. Desenganem-se aqueles que esperavam encontrar aqui um vinho xaroposo, pesado e enjoativo. Essa é a sua maior surpresa. Aqueles atributos que Jorge Moreira defende que caracterizam um grande vinho, estão ali: um equilíbrio admirável e sempre dinâmico entre a intensidade, potência e elegância. Impressiona sobretudo, num vinho tão velho, a extraordinária frescura que ele mantém e mesmo quando foi provado com outros tawnies de idade - 10, 20 e mais de 40 anos - percebe-se a concentração ímpar de aromas complexos mas descobre-se uma leveza que chega a ser inquietante. Enfim, esta foi mesmo uma prova para a história.

As pontes entre o passado e o presente


A comemoração da história da RCV continuou no jantar que se seguiu à prova. Aos aperitivos - excelente marisco com ostras saborosas e percebes gigantes de intenso sabor a mar - provou-se o Espumante RCV Pinot Noir-Chardonnay 2013 que uns dias antes já tinha justamente impressionado favoravelmente os jurados do Concurso Escolha da Imprensa. E não podia ter começado melhor este jantar quando acompanhando um foie gras (apenas regular) foram generosamente servidas nada menos que algumas das ultimas garrafas do Grandjó Colheita Tardia 1925. Este vinho é um monumento e deveria ser classificado património histórico. Oriundo da Quinta da Granja, nos planaltos de Alijó (o nome Grandjó vem da aglutinação destes dois nomes), é um branco de colheita tardia, não fortificado, feito a partir da mesma casta francesa Semillon que quando atacada pela chamada podridão nobre dá origem aos célebres Sauternes, em Bordéus. Mas senhores, este vinho tem 91 anos!!! A cor de tijolo com reflexos dourados que evidencia no copo deixa antever ao que vamos. Mas é quando lhe pomos o nariz em cima que uma explosão de aromas se deflagra e ficamos anestesiados, tal é complexidade e os sucessivos matizes que vão e vêm numa espiral que parece não ter fim. Na boca as surpresas continuam. Ora nos parece algo seco, ora nos deliciamos com o notável equilíbrio entre a acidez e a doçura e com um final interminável. Há momentos em que as palavras nos faltam para descrever certas emoções.

A lógica do restante serviço de vinhos no jantar foi curiosa. Segundo explicou Jorge Moreira, a ideia era apresentar algumas das mais recentes novidades entre os topos de gama do Douro a RCV mas mostrando como eles se inseriam numa lógica de continuidade e consistência. Assim, apresentou um vinho antigo que "inspirou" cada uma das novidades. Percebeu-se assim que o Carvalhas branco 2014, é um digno sucessor do Porca de Murça Reserva 1998, o primeiro branco a ser fermentado em madeira, tal como o Carvalhas Vinhas Velhas 2011 (uma criança ainda com muito para andar) se inseria na linha dos Evel Grande Escolha 1996 ou o Granton 1958. Didática e interessante, a experiência. No final, à sobremesa, um grande Porto Vintage 1931 encerrou o jantar com chave de ouro.




Quinta do Síbio: o futuro é ali.

Se a véspera foi mais dedicada à comemoração do passado, o dia seguinte do nosso tour esteve inteiramente dedicado ao presente e a percepcionar os caminhos do futuro da Companhia que sendo velha de nome tem a vitalidade e a irreverência dos jovens. O nosso destino foi o Douro, mais precisamente o vale do Roncão, onde se situa a Quinta do Síbio que visitámos e cujos novos vinhos provámos depois já nas Carvalhas. Até recentemente a Quinta do Síbio não tinha atraído as atenções mediáticas. Não porque os seus pergaminhos não fossem suficientemente vetustos, já que se trata de uma das mais antigas e tradicionais propriedades da RCV (adquirida em 1934!). Mas simplesmente porque a mesma esteve praticamente abandonada durante vários anos e só nos últimos anos sofreu um ambicioso plano de recuperação dos seus patamares e socalcos que obrigaram a um demorado e dispendioso trabalho de reconstrução dos tradicionais muros de xisto e depois a uma replantação das vinhas. Jorge Moreira viu nesta propriedade grandes potencialidades para fazer vinhos do Douro diferentes e entusiasmou com isso a equipa de viticultura e enologia. Uma das ideias é a recuperação de antigas castas esquecidas do Douro, como as brancas Códega, Esgana Cão ou Sercial, Pêro do Bode, Síria, Samarrinho e Touriga Branca ou Cornifesto, Bastardo, e Tourigas Fêmeas, nas tintas. Os 100 hectares agora com vinha dão para fazer ensaios e experiências com estas raridades mas também para produzir vinhos de castas nobres como a Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinto Cão, Tinta Amarela, Sousão e Tinta Francisca, plantadas em talhões estremes segundo as orientações das novas correntes da viticultura. Importante também são as parcelas com vinha em produção biológica que já se materializam em vinhos ali produzidos, como iremos ver.


As novas experiências, os novos vinhos

Foram quatro os novos vinhos da Quinta do Síbio que tivémos oportunidade de provar tendo em frente o cenário magnífico do Douro, visto do alto da Quinta das Carvalhas. Quinta do Síbio Field Blend branco 2015, produzido de uma parcela de vinhas velhas mas em que o Viosinho é dominante, foi totalmente fermentado e estagiado em inox. Está ainda relativamente fechado no aroma com predomínio de notas vegetais e algum floral. Na boca está mais interessante com bom equilíbrio e excelente acidez que lhe empresta uma frescura cativante.

O Quinta do Síbio Samarrinho branco 2015 foi mais surpreendente. Primeiro porque é o primeiro vinho inteiramente produzido desta casta, em quantidades diminutas, apenas 800 garrafas. Depois porque o vinho revela já uma boa intensidade aromática com notas florais muito bem conseguidas e algum mineral. Na boca é fresco, reforça a sensação mineral conjugando com uma boa estrutura. Uma casta e um vinho a seguir com atenção em futuras edições.

O vinho seguinte foi outro branco e não menos intrigante. Começa no nome - Abanico branco 2015. Desta vez a designação provém do nome da parcela, já que a casta, uma variedade de Moscatel sugerida em tempos pelo famoso técnico australiano Richard Smart não está regulamentada no Douro. O vinho é também estagiado em inox e apresenta uma grande exuberância aromática com muitas notas florais e frutadas. No palato apresenta-se com surpresa muito seco e boa acidez. Foi dito que tem um grande potencial de guarda, coisa que só o tempo poderá confirmar.

Foi já no longo almoço de encerramento da jornada que tivemos oportunidade de provar o Síbio tinto 2014, o topo de gama dos vinhos desta quinta e com preço a condizer (cerca de 50€). É um vinho feito a partir de vinhas de produção biológica das castas Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Francisca e Sousão. A fermentação é feita em partes iguais em lagares tradicionais de granito e de inox e tem 12 mesas de estágio em barricas novas de carvalho francês. O vinho é muito novo, está ainda muito cru mas devo dizer que impressionou bastante. É concentrado, poderoso mas ao mesmo tempo elegante com fruta madura de muito boa qualidade e de grande complexidade. Vai ser curioso ver a sua evolução nos próximos anos.

Devo dizer, para concluir, que fiquei com uma ideia diferente da que tinha da RCV, antes desta viagem. À imagem tradicional de uma vestuta casa de vinhos de Porto, sobressai agora uma empresa que sem renegar o seu passado e alicerçando-se nele, experimenta caminhos, ensaia experiências e ousa inovar. Afinal, Velha, é só o nome e os seus pergaminhos.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Quinta do Vallado: celebrar 300 anos com um vinho mítico


Da Quinta do Vallado se poderia repetir a célebre frase da Baronesa Philippine de Rotschild: «Fazer vinho é um negócio razoavelmente simples; o difícil são só os primeiros 200 anos!» Só que neste caso, os antecedentes e os pergaminhos conseguem ainda ir 100 anos mais longe. Segundo a documentação existente, data de 1716 a constituição desta histórica quinta do Douro que, um século depois, em 1818, entrava na posse da família que ainda hoje a detém, pela mão de António Bernardo Ferreira, filho primogénito de Dona Antónia, a Ferreirinha.

Aproveitando o Encontro com o Vinho e Sabores, a Quinta do Vallado, nas pessoas dos seus dois administradores João Alvares Ribeiro, Francisco Ferreira e o enólogo consultor Francisco Olazabal, todos eles tetranetos de Dona Antónia,  entendeu celebrar estas duas datas históricas próximas, apresentando à imprensa e clientes as suas duas mais recentes novidades. Como não poderia deixar de ser, tratou-se em primeiro lugar de exaltar o passado, com a apresentação de um vinho do Porto mítico e esmagador, o Vallado ABF 1888, ao mesmo tempo que se deixava adivinhar alguns dos caminhos que o futuro nos reserva com a prova do primeiro vinho do Douro Superior da Quinta do Orgal, recentemente adquirida pela empresa.


A Quinta do Orgal, em Vila Nova de Foz Côa, já tinha sido notícia pelo facto de ter visto ali nascer uma unidade de enoturismo absolutamente exemplar, tanto pela arquitectura da sua construção e da ocupação do espaço como pelas preocupações de sustentabilidade e equilíbrio ecológico que presidem a todo o projecto. No que à vinha e ao vinho diz respeito, apesar da sua juventude, é um empreendimento muito pensado, amadurecido. A quinta foi comprada parcela a parcela, num jogo de persistência e paciência. A plantação da vinha foi feita de raiz, pois ali não existiam cepas nem memórias delas. A opção pelo orgânico surgiu com naturalidade, dadas as condições climatéricas do Douro Superior e das possibilidades que a viticultura ali abre.  Mas a boa notícia é que agora os enófilos já podem provar o primeiro vinho ali produzido, feito a partir dos primeiros 30 hectares de vinhas novas: o Vallado Douro Superior Organic Vineyards 2014. Trata-se de um blend de Touriga Nacional, Touriga Franca e uma pequena percentagem de Sousão que teve um estágio em madeira usada, de forma a preservar a boa qualidade da sua fruta vermelha de . Na prova, o vinho surpreendeu francamente. Pelos aromas limpos e finos de fruta vermelha de qualidade, pela sua frescura, polimento e concentração, notável feito se pensarmos que veio de uma vinha plantada há pouco mais de três anos. Um nova referencia a seguir com atenção em próximas colheitas.



Mas as atenções da apresentação da Quinta do Vallado estavam inevitavelmente voltadas para a prova do super Tawny ABF 1888. O vinho é proveniente de vinhas pré-filoxericas e foi produzido por um pequeno viticultor do baixo Corgo, vizinho da Quinta do Vallado que o guardou em cascos de 650 L, onde sempre se manteve. Mais de um século depois, o vinho que restou, aproximadamente 700 L foi adquirido na totalidade pela Quinta do Vallado que o engarrafou e agora lançou para a comemoração dos 300 anos da constituição da propriedade. Um vinho de luxo teria que ter uma apresentação de luxo. As 933 garrafas de 75 cl, são numeradas e embaladas num requintado estojo de madeira de nogueira maciça feito à mão por um artesão especializado e são acompanhadas por um decanter de cristal produzido pela Atlantis que é uma réplica do decanter original utilizado pelo próprio António Bernardo Ferreira em 1830. É um vinho excepcional, de grande complexidade aromática, de textura viscosa, grande concentração e com uma acidez surpreendentemente viva que lhe permite uma nota de frescura que não adivinhávamos num Porto deste calibre. Ia dizer que termina longo mas é mentira! O vinho teima em não terminar e até o copo já vazio pode perfeitamente fazer-nos companhia por muitas horas, prolongando o prazer pela noite fora. Um vinho raríssimo e com um preço que pode parecer escandaloso para muitos (3.500€!) mas que traduz o crescente interesse e procura de certos mercados por produtos de hiper luxo. Ver um vinho do Porto atingir tal patamar, afinal, só nos pode encher de orgulho.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Uma surpresa gastronómica


Voltei este ano a ser jurado por dois dias no concurso de gastronomia dos vinhos do Tejo. Ao contrário do que se possa pensar é uma maratona exigente e muito dura: no meu caso implicou "almoçar" cinco vezes em cada um dos dias em outros tantos restaurantes que se visitam de uma enfiada, transportados por uma carrinha que galga quilómetros de curvas e buracos num contra-relógio desgastante. É verdade que eu e os meus colegas nos defendemos e que em cada local apenas provamos uma pequena porção dos copiosos pratos que nos põem à frente. Mas em todos eles, a sucessão obrigatória de entrada, prato principal e sobremesa, ainda por cima cada um deles harmonizado com um vinho diferente, engana-nos o estômago e confunde o nosso cérebro. É que o nosso está programado para a a seguir à sobremesa nos sentirmos saciados, não para esperar pelo prato de entrada do restaurante seguinte.

Apesar de tudo, e na dose moderada que me impus de restringir a aventura aos dois dias da praxe, acaba por ser uma actividade gratificante para quem se interessa por estes assuntos da gastronomia. Vê-se e prova-se muita coisa banal, deparamos com erros de palmatória e associações improváveis e dói sobretudo ver locais respeitáveis e com um traço de autenticidade, saírem fora de pé e arriscarem entrar em aguas que de todo não dominam. E com isso estamparem-se ao comprido.

Mas é também muito interessante descobrir exemplos de tenacidade e coragem, apostas corajosas de gente simples, ambições legitimas de talentos escondidos. Há por aí muitas coisas espantosas de que não conhecíamos a existência e que se não fosse a oportunidade permaneciam desconhecidas.

É o caso que aqui trago agora. Falo do restaurante da Cooperativa Terra Chã, em Chãos, Alcobertas, ali para os lados de Rio Maior. O sítio é espectacular e por si só vale a visita. Num dos pontos altos da Serra dos Candeeiros, com vista impressionante para o soberbo vale, nasceu um projecto multidisciplinar que integra um conjunto de actividades ligadas ao turismo da natureza, à silvo-pastorícia, apicultura, dispõe de uma oficina de tecelagem, para além de umas muito exemplares instalações para alojamento de jovens em programas de intercâmbio cultural. E, acima de tudo, têm um restaurante, aberto ao público cinco dias por semana (fecha à segunda). A generosa sala de refeições abre em balcão sobre o vale da serra, com vistas de dezenas de quilómetros. Em dias de boa visibilidade, chega-se a ver a serra da Arrábida. Mas é da comida que queria aqui falar. O restaurante valoriza a gastronomia das aldeias da Serra dos Candeeiros, recuperando os pratos típicos da região. Quase tudo o que é servido no Terra Chã é cultivado localmente. Mais cozinha do terroir, não há! O queijo fresco vem do rebanho com 200 cabras que por ali pastam. O mel das colmeias espalhadas pela serra, as galinhas, da criação da casa, as batatas e a leguminosas são cultivadas localmente. O alecrim, o tomilho, o chícharo, e cabrito serrano mostram-se na maior pureza dos seus sabores. Uma breve leitura da lista de pratos habitualmente disponíveis, ajuda-nos a perceber ao que vamos. Estão preparados? Cabrito serrano à Terra Chã, Galo com nozes, Espetadas no louro, Chiba da serra, Galinha à Terra Chã, Migas com bacalhau e batatas a murro. Se se quiser ficar pelos petiscos, a oferta não será menos tentadora: Morcela de arroz, Chouriço serrano, Moelinhas à Terra Chã, Queijo de cabra bio, Azeitonas com plantas aromáticas, entre outros.

Da extensa lista apenas provei, o queijo de cabra fresco com mel, o cabrito e o surpreendente pudim de chícharos (os dois últimos, nas fotos em cima). Sem antecipar juízos e desrespeitar o espírito e regulamento do concurso, posso confirmar a autenticidade dos sabores, a franqueza e o apuro dos temperos, a qualidade da matéria prima. E aquelas batatas, senhores! A sobremesa é um achado, ao juntar ao clássico pudim de ovos,a consistência algo rugosa dessa leguminosa parecida com o tremoço tão autêntica mas quase desconhecida. Tudo o resto é simples, quase rudimentar, desde a aparelhagem da mesa, à lista de vinhos exígua, aos copos sofríveis. Mas a simpatia e o sorriso aberto de quem nos recebe, as faces luminosas daquelas cozinheiras de aldeia que lembram as outras cozinheiras de aldeias das nossas memórias, enchem-nos a alma.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Resultados do concurso Escolha da Imprensa





O Concurso Escolha da Imprensa
Deve ser um caso raro em qualquer parte do mundo uma publicação especializada em vinhos, como a Revista de Vinhos, convidar colegas dos media para virem provar vinhos connosco. É contudo uma ideia que nasceu já no ano 2004 e que, de então para cá, temo-la visto crescer e consolidar. Porque o fazemos? Não certamente porque precisamos de ajuda na tarefa árdua e exigente de provar vinhos. Fazemos isso todos os dias e os nossos provadores são profissionais altamente experimentados, qualquer deles com muitos anos de treino e que fazem da avaliação de vinhos uma componente importante da sua profissão.

Mas ao organizar um grande evento como o é o Encontro Com o Vinho, achamos importante que a maior feira do vinho feita em Portugal possa transpor barreiras de comunicação e alguns dos melhores vinhos que ali se apresentam aos consumidores possam também ter o máximo de divulgação possível por toda a imprensa. Por isso, desde o início, pretendemos que o concurso não se centrasse na equipa da Revista de Vinhos e que integrasse um júri que não fosse unicamente constituído por especialistas em prova. Um concurso que estivesse mais próximo do consumidor de vinhos, que alargasse o leque de opiniões a pessoas que fossem apreciadores frequentes e interessados, tal como muitos dos nossos leitores. Ao longo dos anos fomos conhecendo vários enófilos na comunidade jornalística portuguesa. Alguns são jornalistas que escrevem regularmente sobre vinhos, mas muitos outros fazem do vinho uma paixão e não a sua profissão. Os convites foram enviados e o entusiamo das respostas não tardaram. Nesta edição de 2016 tivemos a presença de 37 jornalistas e bloggers que provaram cerca de 350 amostras! Os jurados levaram a prova muito a sério e empenharam-se em dar o melhor de si. Os resultados que foram anunciados hoje no Encontro Com o Vinho falam por si e comprovam o rigor com que trabalharam. 

E as conclusões a que chegaram foram estas:

Grandes Prémios "Escolha da Imprensa" (Um por cada categoria)


ESPUMANTES
Quinta da Calçada Colheita Imperial Minho Reserva (Agrimota Soc. Agrícola e Florestal)

BRANCOS
Dory Regional Lisboa Reserva branco 2014 (Adegamãe - Soc. Agrícola)

TINTOS
MR Premium Reg. Alentejano tinto 2012 (Soc. Agrícola D. Diniz

FORTIFICADOS
Kopke Porto Colheita 1966 (Sogevinus Fine Wines)


PRÉMIOS "ESCOLHA DA IMPRENSA" (10 vinhos por cada categoria, ordem alfabética)

ESPUMANTES
Cabriz Blanc de Noir Dão Touriga Nacional 2012 (Global Wines)
Marquês de Marialva Cuvée Bairrada 2011 (Adega Coop. de Cantanhede)
Montanha Grande Cuvée Baga-Bairrada 2012 (Caves da Montanha - A. Henriques)
Montes Claros Alentejo 2013 (Adega Coop. de Borba)
Murganheira Assemblage Távora- Varosa Grande Reserva 2002 (Soc. Agríc. Com. do Varosa)
Murganheira Cuvée Távora- Varosa Reserva Especial 2006 (Soc. Agríc. Com. do Varosa)
Murganheira Vintage Távora- Varosa 2007 (Soc. Agríc. Com. do Varosa)
Raposeira Blanc de Noirs Super Reserva 2011 (Caves da Raposeira)
Real Companhia Velha Pinot Noir-Chardonnay 2013 (Real Companhia Velha)
São Domingos Baga-Bairrada 2012 (Caves do Solar de São Domingos)

BRANCOS
Cortes de Cima Reg. Alentejano Alvarinho branco 2015 (Cortes de Cima)
Grandjó Douro Late Harvest 2012 (Real Companhia Velha)
Kopke Douro Reserva branco 2014 (Sogevinus Fine Wines)
Malhadinha Reg. Alentejano branco 2015 (Herdade da Malhadinha Nova)
Marquesa de Alorna Do Tejo Grande Reserva branco 2013 (Soc. Agrícola da Alorna)
Monte da Ravasqueira Reg. Alentejano Reserva branco 2015 (Soc. Agrícola D. Diniz)
Muros de Melgaço Vinho Verde Alvarinho branco 2015 (Anselmo Mendes Vinhos)
Quinta do Gradil Reg. Lisboa Chardonnay branco 2015 (Quinta do Gradil - Soc. Vitivinícola)
Terras do Grifo Douro Reserve branco 2015 (Rozès)
Varanda da Serra Dão branco 2014 (Ares do Dão Soc. Vitivinícola)

ROSÉS
Casa do Lago Reg. Lisboa rosé 2015 (DFJ Vinhos)
Covela Reg. Minho rosé 2015 (Lima & Smith)
H.O Douro rosé 2015 (Casa Agrícola Horta Osório)
Mil Caminhos Reg. Lisboa rosé 2015 (Multiwines)
MR Premium Reg. Alentejano rosé 2015 (Soc. Agrícola D. Diniz)
Pluma Vinho Verde rosé 2015 (Casa de Vila Verde Soc. Agrícola)
Quinta da Boa Esperança Reg. Lisboa rosé 2015 (Favorite Purple)
Quinta do Poço do Lobo Bairrada Baga-Pinot Noir Reserva rosé 2015 (Caves São João)
Terras do Pó Reg. Península de Setúbal rosé 2015 (Casa Ermelinda Freitas Vinhos)

TINTOS
1836 Companhia das Lezírias Do Tejo Grande Reserva tinto 2014 (Companhia das Lezírias)
Crochet Douro tinto 2014 (Esteban & Tavares)
Grandes Quintas Vinhas do Cerval Douro tinto 2012 (Soc. Agrícola Casa D´Arrochella)
Herdade São Miguel Reg. Alentejano Private Collection tinto 2012 (Casa Agrícola Alexandre Relvas)
Poliphonia Signature Reg. Alentejano tinto 2012 (Granacer)
Quinta de Pancas Reg. Lisboa Grande Reserva tinto 2012 (Quinta de Pancas Vinhos)
Quinta dos Murças Douro Reserva tinto 2011 (Murças)
Ribeiro Santo Dão Grande Escolha tinto 2011 (Magnum - Carlos Lucas Vinhos)
Três Bagos Douro Grande Escolha tinto 2011 (Lavradores de Feitoria)
Villa Oliveira Dão Touriga Nacional tinto 2011 (O Abrigo da Passarela)

FORTIFICADOS
Cabriz Ímpar Vinho Licoroso (Global Wines)
Churchill ´s Porto Vintage 2014 (Churchill Graham)
Henriques & Henriques Madeira Terrantez 20 Years Old (Henriques & Henriques -Vinhos)
Poças Porto Colheita 1992 (Manoel D. Poças Junior - Vinhos)
Quinta da Gaivosa Porto Tawny 20 anos (Domingos Alves de Sousa)
Quinta Seara d´Ordens Porto Tawny 20 anos (Soc. Agrícola Quinta Seara d´Ordens)
Rozès Porto Tawny 20 Years Old (Rozès)
Soalheira Porto Old Tawny 20 anos (Soc. dos Vinhos Borges)
Vasques de Carvalho Porto Tawny 40 anos (Vasques de Carvalho)
Vista Alegre Porto Vintage 2014 (Vallegre, Vinhos do Porto)

Parabéns a todos os premiados. 
Os vinhos estão disponiveis e podem ser provados no Encontro Com o Vinho e Sabores.

http://www.revistadevinhos.pt/artigos/show.aspx?seccao=noticias&artigo=22156&title=imprensa-portuguesa-escolheu-os-melhores-vinhos-em-concurso&idioma=pt

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Resistir



Fomos dormir ontem com o conforto de uma quase certeza e acordámos hoje no meio de um pesadelo. O mundo está inquietante, imprevisível e por isso mais perigoso. O que mais assusta é a vaga de populismo demagógico e faccioso que varre várias partes do globo e que a eleição de ontem tornou gritante e incontornável. É o criminoso de delito comum nas Filipinas, é o louco da Coreia do Norte, é o fanático desastrado da Venezuela, são os proto ditadores da Hungria e da Turquia, é o imperialista do Kremlin, é o inacrediváel brexit, é a ameaça Le Pen em França e o mais que aí virá. Como as tendências culturais costumam vir importadas da América, temo uma nova dark age a abater-se sobre nós. Vai muito além da política: são os juízes vitalícios para o Supremo Tribunal que vão impor uma nova agenda de costumes, é sobretudo uma moral assente no fundamentalismo evangélico que despreza a tolerância e teme o que é diferente. Há uma nova jiahd em formação, que se alimenta da outra, a islâmica, que não decapita cabeças mas destrói corações.

São tempos difíceis que estão aí. Os países a isolarem-se, as relações a esfriarem-se, os muros a erguer-se, o comércio internacional a retrair-se, manietado pelas medidas proteccionistas. Cada um por si e ganha o mais forte.

Que fazer? Resistir! Não há noite que sempre dure.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O Galo de Barcelos e o triunfo do kitch


Provavelmente não serei bom português mas a verdade é nunca gostei do galo de Barcelos. E menos ainda consigo compreender a dimensão artística da obra de Joana Vasconcelos por muitos incensada.. Não lhe retiro os méritos, atenção. Tem olho para o negócio, um apurado sentido de marketing e uma capacidade notável para reinventar o lugar comum. Mas, apesar do cacilheiro, apesar de Versalhes e das muitas milhares de visitas, custa-me considerar aquilo como arte. São intervenções, serão happenings, serão acontecimentos mediáticos e populares mas à arte, no meu entender, exige-se um pouco mais: a expressão da beleza, uma certa criação do transcendente, uma perenidade que ultrapassa o contexto e fica para sempre.

Quando olhei para as obras anteriores de Joana Vasconcelos, em que o kitch é o traço dominante, dei por mim a pensar: só te falta mesmo o galo de Barcelos. E não é que ele aí está! Não um galo qualquer mas uma coisa enorme de 10 metros de altura, com 4 toneladas de peso, 17 mil azulejos e, para a coisa atirar assim para o modernaço, 16.000 leds. O triste é que alguém convenceu a Câmara de Lisboa ou o governo, ou sei lá quem, que aquele monstro feérico ficaria bem na Ribeira das Naus, junto ao Tejo amado e maltratado. Pop Galo lhe chamou a artista, inspirando-se no conceito da Pop Art que permite todas as revisitações e todas as cópias. Mas é também um sinal dos tempos. Os mesmos tempos em que a demagogia ganha terreno, o populismo avança,a imitação barata se sobrepõe ao original e os tablóides são campeões de vendas. É o triunfo do kitch.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

E o Vintage também chegou ao Bacalhau


Desenganem-se os que pensam que o bacalhau é todo igual. A Lugrade acaba de lançar no mercado um bacalhau de origem islandesa de cura prolongada a que chamou Vintage e que pretende ser um produto situado no segmento superior da sua oferta.

A designação Vintage explica-se, nas palavras dos responsáveis pela empresa, porque este bacalhau seco tem uma cura especial de 20 meses, bastante superior ao tempo médio habitualmente usado na seca. Vintage ainda porque não é um produto indiferenciado: a Lugrade escolheu este peixe em concreto, sabe exactamente quando e onde ele foi pescado, fez aí a selecção e, naturalmente, acompanhou todo o processo de salga e cura. Joselito Lucas, administrador comercial da empresa de Coimbra, contou numa apresentação aos jornalistas, que foi em 27 de Fevereiro de 2015, ao largo da baía de Keflavik, na Islândia, onde este espécime foi capturado, processado e salgado no próprio dia. Este método, que diverge de outras práticas habituais em que o peixe é primeiro congelado e só posteriormente salgado, confere, segundo explicou, um conjunto de características em termos de sabor e textura que o tornam de facto especial.

É já na sua fábrica em Coimbra que a Lugrade completa o longo processo de cura. Depois de 7 meses em sal, o gadídeo é inspecionado, atesta-se a sua qualidade e é lavado, seguindo-se a secagem em ambiente de temperatura controlada. Após este processo, o bacalhau inicia mais uma etapa de cerca de 12 meses, chamada repouso, onde adquire a textura e consistência desejada, antes de ser embalado.

No próprio embalamento do Vintage, a Lugrade também quis deixar uma marca especial. É apresentado inteiro, envolvido num saco de sarapilheira, e com um selo distintivo, lembrando os fardos onde o peixe antigamente era acondicionado.

O Lugrade Vintage 20 meses é um produto de luxo, do qual existem somente 2000 exemplares numerados, sendo naturalmente um pouco mais caro (20%) do que o bacalhau islandês de topo da empresa. A sua comercialização será feita em apenas alguns estabelecimentos selecionados. 

A apresentação do Lugrade Vintage decorreu num jantar no restaurante Tágide, em Lisboa, tendo a ementa sido confeccionada a quatro mãos pelo chefe residente, Nuno Diniz e por Diogo Rocha (Mesa de Lemos). 
A ementa feita para a ocasião constou de: Canja de Bacalhau com Uvas e Empada de Bacalhau em Massa Folhada, os dois primeiros pratos de Nuno Diniz. Seguiu-se o melhor prato da noite,  Lombos e Línguas de Diogo Rocha, onde o Lugrade Vintage pode expressar  todas as suas potencialidades. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Irlanda: 5 - A Comida (Irish Food)



Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras. 
Sentir tudo excessivamente, 
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas .

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Acho que ninguém imagina a Irlanda como um destino gastronómico. Pelo menos eu não conheço depoimentos de turistas a explicarem que foi a comida que os fez vir à Irlanda ou foi esta uma das melhores recordações da sua viagem. É verdade que as outras memórias são bastante impressivas, pelo que isso ajuda a perceber e a relativizar a importância da comida na mais ocidental da ilhas britânicas. Contudo eles comem e comem muito. É esta, de resto, a primeira nota a realçar. As doses são em geral generosas, a comida é substancial, farta e forte. Na maior parte dos casos, uma porção pedida num pub, dá à vontade para duas pessoas, o que ajuda a tornar acessível a maioria das refeições mesmo para os depenados portugueses.

Breakfast

O dia começa com o irish breakfast (foto de cima). Este segue de perto o modelo inglês: bacon, black pudding (um tipo de morcela) salsichas e ovo estrelado, A coisa pode ainda ser completada por torradas com manteiga ou doce, para alem do sumo de laranja e do café ou chá. Nada mal para começar, heim? Esta é a ementa típica servida tanto nos hotéis como nos cafés e bakeries para quem não tenha o pequeno almoço incluído na diária.Foi o que aconteceu connosco na nossa estadia em Dublin. Tivemos então oportunidade de ver os dubliners no seu habitat. E sim, eles comem isto tudo ao pequeno almoço. Pela nossa parte ao fim do terceiro dia já estávamos fartos de tanta salsicha e black pudding e foi um Starbucks (quem diria!) que nos reconciliou com um café com leite e um croissant.


Almoço

Ao almoço, curiosamente, a refeição é mais simples. Vi muitos locais comerem simplesmente uma sopa, uma sandes ou uma salada. As sopas foram uma surpresa, não pela sua diversidade - percebemos depois que  eram quase sempre as mesmas em todo o lado - mas pela sua presença universal. A mais comum é o famoso chowder, uma sopa habitual no norte da Europa e nos países saxóncios, de peixe e marisco, feita com natas. É saborosa, nutritiva e os pedaços de peixe e marisco não são escassos. O curioso é que qualquer sopa na Irlanda vem sempre acompanhada de duas fatias de um óptimo pão escuro (soda bread) com dois pacotes de manteiga. O pão e a manteiga não são o equivalente ao couvert em Portugal pois assim que acabas de despachar a sopa, o empregado tende a recolher o pão e a manteiga, ainda que não utilizados. Foi um choque cultural ver a reacçao deles quando lhe pedimos para manter o pão na mesa no resto da refeição!


Ao jantar

A refeição mais copiosa é o jantar, que aqui começa cedo para os nossos hábitos. Nem quero acreditar o que se passará com os vizinhos espanhóis, mas a nós avisaram-nos repetidas vezes para nunca chegar tarde ao restaurante, o máximo dos máximos, 7h30/8h00! A oferta, tirando dois casos especiais, em Galway e Kenmare, onde havia a possibilidade de caprichar um pouco e escolher hipóteses uma pouco mais sofisticadas, era em geral repetitiva. Se opção era carne, tinhamos a spare ribs (o equivalente ao nosso entrecosto com molho bbq) ou então o irish stew (guisado de carne e legumes), substancial mas pouco apelativo ao olhar, convenhamos.


Sendo a Irlanda uma ilha, é natural que o peixe fosse abundante e disponível em todo o lado. E é! o modo de preparação é que é monótomo: fish & chips para todos os gostos.Há a versão popular do dito que é servida nos pubs e há versões gourmet em estabelecimentos mais finos, como foi o caso de um em Kinsale, uma bonita cidade piscatória no sul. Ainda hoje estou para perceber a lógica de juntar peixe frito com batatas fritas mas o facto é que o prato é transversal e omnipresente em toda a Irlanda. Por baixo do polme (estaladiço, reconheço!) está um peixe branco indiferenciado. Tal como se vê na foto, os fritos são em geral acompanhados de um esmagado de ervilhas e de um molho tipo aioli. A coisa come-se uma vez para experimentar e fica-se enjoado para o resto da viagem.


Vivam os mercados de rua!

Não estaria a ser justo neste relato pseudo-gastronómico se não fizesse referência aos mercados, sobretudo aos mercados de rua. São uma festa para os olhos: as cores, as formas e os cheiros despertam os sentidos e é um gosto ver as bancas encherem-se de produtores locais que vêm expor os seus produtos hortícolas, os queijos, os pickles, as frutas. Apetece trazer tudo para casa e desforrar a barriga de misérias.