domingo, 27 de março de 2016

Paixão pela comida





Foto: Praça Jemma al-Fna, Marraquexe



Deve ter a ver com coisas de genes. A minha avó era cozinheira e diz quem provou que fazia pratos inesquecíveis. Minha mãe manejava fogões e forno, sobretudo nos doces, para regalo da família. E só lamento o tempo que me demorou a passar a fase estúpida dos miúdos que torcem o nariz e enjoam com tudo, já que o desperdício, de anos e experiências, vejo-o hoje com pesar, foi enorme. Genética, pois? Talvez sim. O rapaz que está a sair da adolescência lá em casa não perde muito tempo a ver fazer nem colecciona receitas mas adora o Hell’s Kitchen e anseia que lhe deixemos a casa livre para ensaiar com amigos algumas experiências na cozinha.


Portanto há-de vir no sangue mas também tem muito de adquirido esta paixão pela comida que me consome há muito. Tem a ver com vivências, com trajectos, com lugares, com pessoas com quem me cruzei. Tem a ver com ambientes mas também com interesses. Desde cedo percebi que há dois tipos de atitudes relativamente à cozinha e à comida. Há aqueles, e serão porventura a maioria, que a entendem com uma simples satisfação de uma necessidade básica inerente a qualquer ser vivo. Comem porque têm que comer e não pensam muito nisso. Têm, é claro, gostos e preferências mas estes não determinam nem condicionam a sua forma de estar e pensar o mundo. E há os outros, os que entendem a cozinha como uma manifestação profunda da forma como uma comunidade projecta a sua história, as suas memórias, a sua cultura. Tenho para mim que é afinal à mesa que conhecemos melhor os homens. Os hábitos alimentares dizem mais sobre uma comunidade que as cidades planificadas, os edifícios erguidos ou os tratados escritos. Olhemos para nós: haverá algum momento mais íntimo e intenso para captar a verdadeira essência da alma portuguesa do que observar um grupo de compatriotas reunidos à mesa a partilhar uma refeição? Ninguém come como nós!


Há quinhentos anos andámos pelo mundo e incorporámos alimentos estranhos, aromas e sabores exógenos na nossa alimentação. E fizemos mais: transportámos ingredientes e culturas de um lado para o outro. Contribuímos como ninguém para que se mudasse a forma como o mundo se alimenta. Havia aqui uma curiosidade insaciável, um gosto pelo novo e diferente, um entusiasmo pelo outro que se terá perdido algures. Ou talvez não ainda. A forma como continuamos a acolher novidades e elas se tornam moda num abrir e fechar de olhos é capaz de dizer alguma coisa. Foram os restaurantes chineses há 20 anos, é agora a onda do sushi e sashimi…

Por mim, pecador me confesso: continuo viciado! Não há loja gourmet que não visite demoradamente, descobrindo sempre qualquer coisa que acabo por levar. Pode ser uma conserva, pode ser uma especiaria, uma erva, um fumado. Em qualquer cidade que conheça, o tour nunca estará completo sem uma demorada visita ao mercado. Adoro fotografar as bancas expostas de peixes e legumes que não me são familiares. Ainda me lembro da surpresa que tive quando vi pela primeira vez uma laranja vermelha! E sou muitas vezes um chato perguntando aos vendedores o que é, para que serve, como se come? Sou daqueles que são capazes de fazer um desvio de 50 km, levando a família toda a reboque, só para conhecer um restaurante novo de que tinha ouvido falar. Em férias, recuso viagens em grupo porque só o planeamento individual me dá a possibilidade de parar para almoçar ou jantar onde quero. Sou maníaco de livros de cozinha, de receitas recortadas daqui e dali que se amontoam caoticamente empilhadas em estantes e prateleiras que são já quase inexpugnáveis. Visito assiduamente sites e blogs, gravo programas de televisão sobre comida. E, sobretudo, adoro cozinhar. Cozinho quando estou tenso mas também quando estou calmo. Cozinho quando me quero distrair e quando preciso de aumentar um bocadinho a auto-estima. E the last but not the least adoro receber amigos em casa, acolhê-los na cozinha que convenci a família a renovar no verão passado e onde com um copo de vinho na mão gosto de brindar à amizade.

(Texto escrito em 2013 para a revista do Club del Gourmet do El Corte Inglês.)


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