segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Uma surpresa gastronómica


Voltei este ano a ser jurado por dois dias no concurso de gastronomia dos vinhos do Tejo. Ao contrário do que se possa pensar é uma maratona exigente e muito dura: no meu caso implicou "almoçar" cinco vezes em cada um dos dias em outros tantos restaurantes que se visitam de uma enfiada, transportados por uma carrinha que galga quilómetros de curvas e buracos num contra-relógio desgastante. É verdade que eu e os meus colegas nos defendemos e que em cada local apenas provamos uma pequena porção dos copiosos pratos que nos põem à frente. Mas em todos eles, a sucessão obrigatória de entrada, prato principal e sobremesa, ainda por cima cada um deles harmonizado com um vinho diferente, engana-nos o estômago e confunde o nosso cérebro. É que o nosso está programado para a a seguir à sobremesa nos sentirmos saciados, não para esperar pelo prato de entrada do restaurante seguinte.

Apesar de tudo, e na dose moderada que me impus de restringir a aventura aos dois dias da praxe, acaba por ser uma actividade gratificante para quem se interessa por estes assuntos da gastronomia. Vê-se e prova-se muita coisa banal, deparamos com erros de palmatória e associações improváveis e dói sobretudo ver locais respeitáveis e com um traço de autenticidade, saírem fora de pé e arriscarem entrar em aguas que de todo não dominam. E com isso estamparem-se ao comprido.

Mas é também muito interessante descobrir exemplos de tenacidade e coragem, apostas corajosas de gente simples, ambições legitimas de talentos escondidos. Há por aí muitas coisas espantosas de que não conhecíamos a existência e que se não fosse a oportunidade permaneciam desconhecidas.

É o caso que aqui trago agora. Falo do restaurante da Cooperativa Terra Chã, em Chãos, Alcobertas, ali para os lados de Rio Maior. O sítio é espectacular e por si só vale a visita. Num dos pontos altos da Serra dos Candeeiros, com vista impressionante para o soberbo vale, nasceu um projecto multidisciplinar que integra um conjunto de actividades ligadas ao turismo da natureza, à silvo-pastorícia, apicultura, dispõe de uma oficina de tecelagem, para além de umas muito exemplares instalações para alojamento de jovens em programas de intercâmbio cultural. E, acima de tudo, têm um restaurante, aberto ao público cinco dias por semana (fecha à segunda). A generosa sala de refeições abre em balcão sobre o vale da serra, com vistas de dezenas de quilómetros. Em dias de boa visibilidade, chega-se a ver a serra da Arrábida. Mas é da comida que queria aqui falar. O restaurante valoriza a gastronomia das aldeias da Serra dos Candeeiros, recuperando os pratos típicos da região. Quase tudo o que é servido no Terra Chã é cultivado localmente. Mais cozinha do terroir, não há! O queijo fresco vem do rebanho com 200 cabras que por ali pastam. O mel das colmeias espalhadas pela serra, as galinhas, da criação da casa, as batatas e a leguminosas são cultivadas localmente. O alecrim, o tomilho, o chícharo, e cabrito serrano mostram-se na maior pureza dos seus sabores. Uma breve leitura da lista de pratos habitualmente disponíveis, ajuda-nos a perceber ao que vamos. Estão preparados? Cabrito serrano à Terra Chã, Galo com nozes, Espetadas no louro, Chiba da serra, Galinha à Terra Chã, Migas com bacalhau e batatas a murro. Se se quiser ficar pelos petiscos, a oferta não será menos tentadora: Morcela de arroz, Chouriço serrano, Moelinhas à Terra Chã, Queijo de cabra bio, Azeitonas com plantas aromáticas, entre outros.

Da extensa lista apenas provei, o queijo de cabra fresco com mel, o cabrito e o surpreendente pudim de chícharos (os dois últimos, nas fotos em cima). Sem antecipar juízos e desrespeitar o espírito e regulamento do concurso, posso confirmar a autenticidade dos sabores, a franqueza e o apuro dos temperos, a qualidade da matéria prima. E aquelas batatas, senhores! A sobremesa é um achado, ao juntar ao clássico pudim de ovos,a consistência algo rugosa dessa leguminosa parecida com o tremoço tão autêntica mas quase desconhecida. Tudo o resto é simples, quase rudimentar, desde a aparelhagem da mesa, à lista de vinhos exígua, aos copos sofríveis. Mas a simpatia e o sorriso aberto de quem nos recebe, as faces luminosas daquelas cozinheiras de aldeia que lembram as outras cozinheiras de aldeias das nossas memórias, enchem-nos a alma.

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